Na rua lateral da Igreja São Benedito, no coração do Centro Histórico de Cuiabá, o Bar do Buda abre as portas apenas uma vez por ano, no dia da festa do santo negro que mobiliza a fé e a memória dos cuiabanos. O nome verdadeiro do dono do estabelecimento é Carlos Magalhães, mas o apelido estampado na fachada o acompanha há mais de cinco décadas. As primeiras paredes do bar foram erguidas pelas mãos do sogro dele Aristides Junqueira que, quando saía do trabalho ia de bicicleta até o Porto para buscar barro e moldar as paredes de adobe.
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A alcunha nasceu do corpo rechonchudo que ele exibia quando jogava bola nas ruas do bairro onde cresceu. Com o tempo, o apelido virou identidade e também nome do bar que começou com o sogro Aristides Junqueira, em 1939. Hoje, é parte do patrimônio afetivo do Centro Histórico, onde Buda ainda vive entre as lembranças, como o baleiro antigo do fundador do estabelecimento, e a promessa de que certas portas, mesmo que fechem, nunca se esquecem de como se abrem.
Ao Olhar Conceito, Buda explica que precisou fechar o bar na pandemia da covid-19 quando também foi contaminado pelo coronavírus. “Fiquei muito mal, só não precisei ser entubado, mas foi difícil. Decidi que ia dar um tempo”, lembra o homem simpático que olha para a porta de madeira do bar sentado em uma cadeira de plástico.
O estabelecimento também divide terreno com a casa em que o sogro morava. Foi ali que personalidades da cultura cuiabana, como Liu Arruda e Ivan Belém, sentavam para um gole de cerveja ou um copo de amargo, como a cachaça preparada por Aristides era conhecida pelos frequentadores.
“Ele fazia 10 litros de amargo por semana, o pessoal gostava bastante. Perguntavam para ele: ‘qual que é desse amargo seu que é tão bom?’ Ele gostava de zoar, respondia: passei na minha zorba”, conta Buda aos risos.
Além do baleiro que era do sogro, outros itens que decoravam o bar, como o relógio em forma de bíblia que Aristides costumava ficar olhando as horas estão guardados pela família, que sonha em organizar tudo para a reabertura do bar.
Buda guarda memórias antigas do Centro Histórico de Cuiabá e chegou a encontrar ouro nas brincadeiras de infância pela região. (Foto: Bruna Barbosa)
Era nesse relógio que se tornou relíquia que Aristides vigiava, atento, o momento de parar de servir a cerveja e o amargo para os clientes. A regra era clara: às 20h ninguém mais podia estar ali dentro, quem chegasse às 19h30 ouvia o aviso direto: “bebe logo, ‘bagabundo’, era assim que ele falava, ‘bagabundo’, que eu trabalho o dia inteiro”.
A relação que Aristides tinha com os clientes era de amizade e, por isso, se sentia a vontade para brincar com cada um deles, lembra Buda. O bar fechava cedo, mas às 5h já estava aberto com Aristides sentado do outro lado da rua, cumprimentando cada pessoa que passava. Buda conta que ele conhecia todos pelo nome, pelo rosto e pelo horário em que passavam.
“Se algum dos clientes que costumava vir às 18h, por exemplo, não aparecia, ele ficava preocupado, entrava falando: ‘fulano não veio hoje’. Depois a pessoa aparecia e ele perguntava o que tinha acontecido para não vir”.
Como cresceu no Centro Histórico, Buda sabia quem Aristides era. Quando criança, ele lembra que tinha medo do sogro por conta do respeito que ele impunha no bairro, sem imaginar que um dia herdaria o balcão do bar. Há duas décadas, a vida de Buda cruzou com o bar, quando ele se apaixonou à primeira vista pela esposa.
Na época, Aristides já tinha falecido e os filhos estavam cuidando do bar. Logo, a família passou a receber a ajuda de Buda na administração do bar. Como forma de agradecimento, a fachada ganhou o apelido do cuiabano que cresceu no Centro Histórico e brincava de achar pequenos pedaços de ouro na Prainha com os amigos.
Buda mora no Centro Histórico de Cuiabá desde que nasceu. (Foto: Bruna Barbosa)
“Antes não tinha nome na fachada, o seu Aristides nunca colocou. Foi uma surpresa para mim”.
Mesmo com as portas fechadas quase o ano todo, o bar continua vivo na memória de quem passou por ali. Carlos se emociona ao contar que, certa vez, um homem entrou e, ao olhar para as paredes, lembrou da estrela-do-mar que havia pregada ali décadas atrás.
Ele passava todos os dias pelo bar a caminho da escola eembrou também da sogra de Buda, dona Maria, que dava tubaína e balinhas para ele e o irmão, para desespero da mãe, que não queria os filhos comendo bobagem antes do almoço.
Outro rapaz, hoje engenheiro, contou que também ganhava balinha no balcão, mas escondia da mãe, diretora de colégio. “Minha sogra tinha um coração muito grande”.
Com planos de reabrir o bar de forma até o final do ano, Buda guarda as memórias do tempo em que as ruas eram ocupadas por crianças, os quintais não tinham muros e a cidade parecia mais livre. Hoje, com o bairro mais esvaziado e silencioso, ele faz planos para reabrir o bar.
Quer voltar a receber as pessoas, resgatar a rotina de balcão e manter viva a história do lugar, que já se misturou com a dele. “Quem tem bar geralmente gosta de conversa, de ver o povo chegando. E eu gosto da bagunça.”
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