Alvo de uma investigação do governo Donald Trump por práticas supostamente injustas no comércio, o Brasil tem um histórico de graves atritos comerciais com os Estados Unidos nas últimas décadas. O auge desse embate ocorreu nos anos 1980, com processos semelhantes abertos pelo USTR (escritório do representante de comércio dos EUA) em disputas envolvendo informática e patentes farmacêuticas.
Em 15 de julho, sob determinação de Trump, o USTR iniciou uma apuração formal contra o Brasil em múltiplas frentes: comércio digital e serviços de pagamento eletrônico; tarifas “injustas e preferenciais”; leis anticorrupção; proteção da propriedade intelectual; acesso ao mercado de etanol; e desmatamento ilegal.
Como a Folha mostrou, essa nova investigação tem potencial de causar danos adicionais à economia brasileira e traz riscos de sanções consideradas de difícil reversão.
Não é a primeira vez que o Brasil entra na mira do USTR e se torna alvo de um processo com base na chamada seção 301 da Lei de Comércio dos EUA. O país já enfrentou ao menos quatro apurações desse tipo, embora menos abrangentes que a atual. Em um dos casos, houve aplicação de sanções.
No primeiro episódio, a ofensiva de Washington foi motivada pela Política Nacional de Informática, instituída por lei em 1984. Um dos principais pontos dessa política eram incentivos e proteção para empresas brasileiras, o que limitava a atuação de companhias estrangeiras —sobretudo americanas.
Em setembro de 1985, o USTR lançou uma investigação contra a “Política Nacional de Informática e seus efeitos sobre as exportações dos EUA e as atividades de empresas norte-americanas no Brasil”.
Os EUA alegavam que a política brasileira restringia investimentos americanos no setor e que não havia proteção adequada de propriedade intelectual no país.
Segundo relatou o embaixador Regis Arslanian em um estudo sobre o tema feito para o Itamaraty, as negociações entre os dois países se estenderam pelos anos seguintes.
De um lado, a sinalização do Brasil de que garantiria em lei a proteção de direitos autorais de software levou os EUA a adiar a conclusão da apuração. De outro, houve momentos de forte tensão, como em 1987, quando o governo brasileiro negou um pedido de licenciamento feito pela Microsoft.
Após essa decisão, o então presidente dos EUA, Ronald Reagan, ameaçou aplicar uma sobretaxa de 100% sobre uma cesta de produtos brasileiros. A lista de bens que seriam tarifados incluía chapas de madeira, ferro, máquinas, equipamentos telefônicos e aviões.
“Naquele mesmo dia, o presidente José Sarney, em nota à imprensa, informou que o Brasil recorreria ao GATT [antecessor da OMC] e declarou que considerava a atitude norte-americana um ‘constrangimento inaceitável’, denunciando ainda o procedimento do governo dos EUA por não ter utilizado a via diplomática para o anúncio de sua decisão”, relatou Arslanian em sua tese.
O Brasil então concedeu licença de comercialização para uma versão mais atualizada do programa da Microsoft e promoveu novas flexibilizações na política de informática. As sanções foram suspensas, mas a investigação do USTR só foi encerrada em 1989.
À Folha Arslanian, hoje sócio do escritório Licks Attorneys, diz que embora aquele tarifaço de Reagan não tenha sido implementado, houve prejuízos a exportadores brasileiros que constavam na lista de possíveis alvos, uma vez que a incerteza inviabilizou vendas para os EUA.
Mesmo antes do fim da disputa sobre informática, o USTR abriu nova frente contra o Brasil, dessa vez no setor farmacêutico. O embaixador Mauricio Lyrio, hoje secretário de Clima no Itamaraty e um dos responsáveis por negociações com o governo Trump, relatou em trabalho acadêmico publicado em 1994 que o principal pleito de Washington era a eliminação de um dispositivo no Código de Propriedade Industrial que proibia a concessão de patentes a medicamentos.
A investigação foi iniciada em 1987, a pedido de uma associação de laboratórios americanos. Nos primeiros contatos, o Brasil resistiu à ideia de flexibilizar sua posição sobre o patenteamento, o que levou ao anúncio —e posterior implementação— de tarifas punitivas de 100% sobre determinados produtos brasileiros.
Foram três grupos de itens sobretaxados: papel, farmacêuticos e produtos eletrônicos.
A postura negociadora brasileira mudou com a chegada de Fernando Collor à Presidência (1990), o que enfraqueceu a abordagem nacionalista em favor de um projeto mais liberal. O novo governo admitiu reformar o Código de Propriedade Industrial para permitir o patenteamento de remédios.
Além da mudança de orientação no Palácio do Planalto, Lyrio ponderou em seu artigo que a eficácia da proibição de patentes já estava sendo questionada internamente.
“A precariedade da resistência ao pleito norte-americano devia-se ao fato de que a eficácia econômica do não patenteamento era perfeitamente contestável: a medida gerara custos comerciais, como as sanções de julho de 1988, sem a contrapartida de benefícios internos, pois não desenvolvera a capacitação tecnológica nacional no setor farmacêutico, nem impedira a perda de mercado dos laboratórios brasileiros”, escreveu.
As sanções americanas nesse caso foram encerradas em 1990.
Nos anos 1990, houve uma nova investigação na área de propriedade intelectual, rapidamente encerrada sem a imposição de sanções ao Brasil.
Mas o fim da apuração não significou o desaparecimento da ameaça de ações do USTR. O Brasil permaneceu numa lista de países que, na visão dos EUA, têm regras frágeis de propriedade intelectual, o que sempre significou risco de medidas adicionais.
No primeiro mandato de Trump, o Brasil voltou a figurar numa apuração do USTR, mas num processo setorial em que várias nações foram acusadas de possíveis práticas de taxação de serviços digitais. A ação foi encerrada na gestão Joe Biden, com a conclusão de que o Brasil não realizou esse tipo de taxação.
Ao analisar o uso da seção 301 na década de 1980 e agora, Arslanian vê diferenças claras.
“O conceito utilizado antes era baseado no liberalismo comercial. A [investigação da seção] era um instrumento para abrir mercados. Hoje em dia a [seção] 301 é um instrumento protecionista. Trump a usou contra o Brasil para fundamentar o fechamento do mercado americano para produtos brasileiros”, afirma à Folha.